Incidente de resolução de demandas repetitivas: avanço ou retrocesso?
Intitulado como a grande novidade do Novo Código de Processo Civil o Incidente tem como objetivo aprimorar a qualidade da prestação jurisdicional. A massificação dos conflitos gerou uma nova realidade que o atual diploma processual civil não consegue abarcar, posto que foi elaborado para solucionar conflitos individuais.
Tão grave quanto a demora na resolução do conflito, é a observada queda na segurança jurídica, decorrente da ausência de uniformidade e estabilidade da jurisprudência no âmbito dos Tribunais pátrios, que ao julgar causas idênticas provenientes da massificação de direitos, apresentam soluções díspares, sujeitando os jurisdicionados a uma justiça “lotérica” que contribui para o descrédito do Poder Judiciário. O incidente busca evitar a inócua movimentação da máquina judiciária – com a prolação de várias decisões e a consequente abertura de possibilidade para a interposição de vários recursos – na solução de uma mesma causa de direito, bem como promove a uniformização e a pacificação da jurisprudência em todo o território nacional.
O princípio da legalidade, em sua tradicional concepção, vincula todos os aplicadores ao excessivo apego à letra da lei, logo, os juízes devem decidir e fundamentar suas decisões de acordo com a lei escrita.
Entretanto, essa rigidez e tradicionalismo vêm sofrendo uma constante relativização no sistema jurídico brasileiro.
Em virtude da lei não conseguir abarcar todas as situações que surgem com a evolução da sociedade e com o próprio cotidiano das pessoas, os legisladores passaram a optar por criar normas com conceitos amplos, genéricos e abertos, que darão ao juiz a liberdade de adaptar essas regras conforme o que lhe parece mais acertado diante do caso concreto.
Diante desse quadro, pode-se concluir que o princípio da legalidade, atualmente, não se traduz no excessivo apego à letra da lei, mas sim na vinculação da lei conforme ela é vista pelos olhos da doutrina e da jurisprudência.
Desse modo, a relativização do princípio da legalidade, demonstra que o Civil law está se desvencilhando das amarras do tradicionalismo de sua origem, na medida em que vem conferindo uma maior importância para a jurisprudência, visto que esta é resultado da atividade criativa dos juízes, ao utilizar leis com cláusulas abertas que lhe proporcionam uma maior liberdade para criarem novos sentidos e perspectivas em relação à determinada norma, sobretudo à luz dos direitos fundamentais.
Assim, podemos enxergar sob vários aspectos a importância de se conceder à jurisprudência uma maior força, pois atualmente com a preocupação com respeito ao princípio da dignidade humana e à garantia dos direitos fundamentais, a solução que se apresenta para a harmonização entre as leis e o respeito a esses princípios é a aplicação do bom discernimento do julgador no caso concreto, formando, com a variedade de decisões, a chamada jurisprudência.
A jurisprudência, nesse sentido, já vem sendo aceita e utilizada como fonte para o julgador analisar outras decisões e extrair seu posicionamento, através dos institutos criados pela introdução da Emenda Constitucional n. 45, que estabeleceu para os casos previstos no Art. 103-A da Constituição Federal, as Súmulas Vinculantes.
Tais Súmulas serão elaboradas se a matéria for de natureza constitucional e se houverem decisões reiteradas sobre a questão, sendo que o seu desrespeito ensejará reclamação ao STF, que, entendendo cabível, anulará o ato administrativo ou a decisão reclamada.
Outras reformas foram feitas no ordenamento jurídico brasileiro, como a introduzida pela Lei 11.277/2006 que criou outros mecanismos baseados na jurisprudência.
No entanto, o desafio que se impõe ao nosso ordenamento, é o de sistematizar essas decisões, juntá-las de forma que se extraia um posicionamento firme, consolidado, sobre determinado assunto, utilizando-se, para tanto, a ideia do sistema de precedentes do Common law.
Tal situação se torna urgente na medida em que se analisam julgamentos de assuntos análogos de forma diferente, ferindo princípios basilares como a isonomia e a segurança jurídica, que nos são assegurados constitucionalmente.
Em vista disso, torna-se fundamental a uniformização dessa jurisprudência a fim de criar um sistema de precedentes judiciais em nosso ordenamento jurídico.
Nesse aspecto, a uniformização da jurisprudência poderá se dar através da utilização da técnica dos precedentes judiciais.
O termo precedente judicial pode ser entendido, em um estudo muito simplista sobre o tema, como sinônimo de jurisprudência, entretanto, ao se analisar detidamente tais institutos, percebe-se que diferenças há entre ambos.
Assim, podemos perceber logo de início, que o precedente é uma decisão, que contém o posicionamento sobre determinado assunto e será aplicada no julgamento de caso semelhante, enquanto que a jurisprudência se constituirá de várias decisões relativas a vários casos concretos em que caberá ao julgador estabelecer qual é a decisão realmente relevante para o seu julgamento.
Quanto ao caráter qualitativo dos institutos, o precedente fornecerá uma regra que poderá ser utilizada como critério no julgamento de casos análogos e caberá ao juiz analisar se, de acordo com os fatos existentes na decisão analisada e na decisão objeto do precedente, caberá ou não a aplicação das regras já estabelecidas.
No entanto, na análise da jurisprudência essa comparação de fatos não será possível, em função de existirem muitas decisões.
Isso dificultará a atividade do julgador ao determinar o que poderá ser objeto de precedente.
Evidencia-se, portanto, que a técnica dos precedentes se mostra muito mais viável do que a utilização da jurisprudência, na medida em que facilitará a atividade do julgador que já terá uma regra específica para o caso que analisa, obtendo-se uma marcha processual muito mais célere e, portanto, torna-se de extrema importância a implantação deste instituto em nosso ordenamento jurídico.
No Novo Código de Processo Civil, foi instituído o Incidente de Julgamento de Demandas Repetitivas, que atuará diretamente no problema de imprevisibilidade das decisões judiciais e suas consequências; que estabelecerá posicionamento sobre assunto presente em diversas demandas para que este sirva de parâmetro para futuras decisões, evitando, portanto, a citada imprevisibilidade, afastando a insegurança jurídica e primando pela igualdade dos julgamentos.
Evidencia-se, diante do exposto, que as expectativas em torno do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas são pertinentes, já que ele pode ser hábil a contornar, em um estágio inicial, o problema da massificação dos conflitos, evitando-se a movimentação da máquina judiciária que é acionada repetidas vezes para solucionar a mesma questão de direito.
Ademais, o instituto parece atender de forma satisfatória, moderna, eficaz e congruente às aspirações jurídico-legislativas, tendo em vista que permitirá um aumento na celeridade da prestação jurisdicional sem desconsiderar a sua qualidade.
Em linhas gerais, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas representará um avanço em nosso sistema jurídico e está apto a cumprir com suas expectativas.
Thauara da Fonseca Martins, advogada, graduada na Universidade Federal da Grande Dourados.
(Extraído de Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora da Universidade Federal da Grande Dourados, como pré-requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, sob a orientação do Prof. Me. Alisson Henrique do Prado Farinelli).
1 Comentário
Faça um comentário construtivo para esse documento.
Citaria o princípio do livre convencimento do juiz... continuar lendo